O agro está se arvorando para a cima da educação nacional – e isso não é uma figura de linguagem. Por meio da associação De Olho no Material Escolar, o setor já influencia parlamentares, propondo emendas sobre o que deve ser ensinado em sala de aula. Agora, mira os planos estaduais e municipais de educação.
O que começou com um desconforto contra livros didáticos ganhou corpo: hoje o grupo já propõe normas de alfabetização, de avaliação das escolas e até de bônus para professores, para citar alguns exemplos.
“Quem faz o conteúdo didático não conhece o agro. E quem ensina tampouco’, explicou o advogado Henrique Silveira, vice-presidente da associação. “Precisamos dar base”, justifica.
Conhecida pelo acrônimo Donme, a associação foi fundada em 2021, no município de Barretos, em São Paulo, “diante da constatação de uma significativa desinformação sobre o setor agropecuário nos materiais escolares utilizados no Brasil”, segundo a descrição disponível no site da associação.
A alegada desinformação teria sido constatada pela própria presidente, Leticia Jacintho, através da análise dos livros usados por seus filhos em sala de aula. Com formação em administração, Letícia é casada com Sebastião Jacintho, dono da Fazenda Continental, que investe na produção de soja, cana, milho e na pecuária.
Além de presidir a Donme, ela integra o Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, e o Núcleo Feminino do Agronegócio.
“Há uma história única sobre o agro sendo contada nas escolas brasileiras, que mostra o agro como um setor que fomenta a injustiça, a opressão e a destruição”, ela explicou, em uma entrevista à revista ‘Perfil’. “Não podemos deixar que essa história míope seja a única a ser contada a milhões de crianças e jovens brasileiros, por decisão de um pequeno grupo com parco conhecimento do assunto”, disse, na ocasião.
Em 2023, a Donme encomendou à Fundação Instituto de Administração, a FIA, uma instituição privada criada por professores do Departamento de Administração da Universidade de São Paulo, USP, um estudo chamado “O Agronegócio do Livro Didático”.
O estudo, que partiu de uma amostra inicial de 94 livros (depois reduzida para 71 títulos), afirma que metade das menções ao setor é “negativa ou fortemente negativa, com concentração de viés político ideológico, informações imprecisas e ausentes, a ponto de comprometer o entendimento sobre o agronegócio”.
Por conteúdo negativo, o estudo se refere a trechos que falam sobre o desmatamento ilegal para dar lugar à criação de gado, ou sobre os riscos do uso de agrotóxicos. O estudo também questiona a falta de bibliografia nos livros didáticos – reclamação estranha, dado que os livros não só vêm com dados bibliográficos, como apresentam uma versão expandida das referências nos exemplares dos professores.
Um dos livros inventariados usa o poema “O Açúcar’’, de Ferreira Gullar, para suscitar um debate sobre as condições de trabalho no campo: “Em lugares distantes, onde não há hospital / nem escola, / homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos / plantaram e colheram a cana / que viraria açúcar”.
Outro tenta explicar o que é uma hipérbole a partir de uma frase de um diretor do Ibama: “Ou os agricultores e pecuaristas interrompem imediatamente as queimadas, ou eles vão fazer do Brasil um inferno”. Alguns dos exemplos estão disponíveis nesta apresentação feita pela própria Donme.
Em agosto, a Donme escalou o deputado Tião Medeiros, do Progressistas do Paraná, para se reunir com diretores da Câmara Brasileira do Livro. Foi o terceiro encontro de representantes da ONG com a entidade sem fins lucrativos responsável por emitir o ISBN (algo como o número de identidade que um livro é obrigado a ter no Brasil).
A conversa correu de maneira cordata, de acordo com um integrante da diretoria da CBL que pediu para não ser identificado:
“Uma parte da queixa é possível absorver: conversar com mais gente do setor é o nosso trabalho. Mas não aceitamos a imputação que eles fazem de que o livro não tem embasamento científico. Respeitamos a base nacional comum curricular , editais, a base científica da disciplina. Ninguém tira informação da cartola”, alertou.
O integrante da diretoria da CBL explicou que os livros didáticos produzidos hoje serão lançados em, no mínimo, quatro anos, devido ao longo processo de revisão. “Também refuto a ideia de que os livros têm visão negativa. Eles têm visão dos fatos”. Por fim, lembrou que a CBL não foi consultada pela Donme ou pelos dois professores da USP em nenhum momento durante a preparação do relatório. “Nunca escutaram a gente, apesar de cobrirmos 90% do mercado”.
A defesa é endossada por Maria Cecília Condeixa, presidente da Abrale, a Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos. “O material didático brasileiro é considerado de muita qualidade”, diz ela. “O Programa Nacional do Livro e do Material Didático tem avaliações rigorosas justamente para evitar que os livros tenham tendências, sejam parciais. E isso é o contrário do que o pessoal do Donme faz. Eles acham que a gente deveria falar bem de agrotóxico, portanto, que deveríamos ser parciais”.
Em setembro, a Abrale publicou uma nota respondendo aos ataques da Donme. A nota explicava que os autores de livros “trabalham com fundamentação científica, não achismos”. Para isso, citava a FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura; a Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária; a Conab, a Companhia Nacional de Abastecimento; o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e o Inpe, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, como algumas das fontes usadas nos materiais didáticos.
“É responsabilidade dos autores retratar a delicada equação entre agronegócio e meio ambiente de forma cuidadosa e precisa”, prosseguia a nota, lembrando que o último Relatório Anual do Desmatamento no Brasil do MapBiomas, de maio de 2025, apontava que a agropecuária continua sendo o principal vetor de desmatamento no país. “Livros didáticos não podem negligenciar informações tão cruciais”.
Por fim, contestava a suposta imparcialidade do estudo apresentado pela Donme, apontando que “os analistas envolvidos são especialistas do agronegócio, e não especialistas em educação, didática ou avaliação pedagógica. Isso compromete a confiabilidade do estudo enquanto diagnóstico educacional”.
Plano Nacional de Educação no alvo
Mas a De Olho no Material Escolar tem voltado seu esforço para além dos livros didáticos. “Passamos de ‘quanto isso afeta o agro’ para ‘quanto isso afeta a educação’”, disse Silveira, vice-presidente da associação, em conversa com o Observatório do Clima. A presença de grupos empresariais no campo da educação não chega a ser novidade – vide as fundações Lemann e Itaú, que pertencem a uma cervejaria e um banco, para citar dois exemplos bem conhecidos. Mas é a primeira vez que o agronegócio avança sobre essa seara.
Silveira enviou um documento com 21 temas de emendas, em que, segundo ele, a Donme teria influenciado no projeto de lei 2614/2024, sobre o Plano Nacional de Educação, PNE, aprovado agora em dezembro. O PNE é o documento que define estratégias, metas e diretrizes para a educação brasileira pelos próximos dez anos.
Alguns dos temas em que a Donme alega ter influenciado o texto final – ambiente escolar seguro, ou plano de ação com foco em resultados – são genéricos, e possivelmente já estariam no PNE. Outros são mais específicos: criação de metas de avaliação escolar alinhadas com critérios internacionais, ou expansão de convênios com entidades sem fins lucrativos para a educação infantil.
O movimento é visto com ressalva pela educadora Priscila Cruz, presidente-executiva do movimento Todos Pela Educação, referência no tema. “Trata-se de um grupo com viés ideológico bem marcado, que deveria ser transparente em relação a isso”, diz.
Coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a cientista política Andressa Pellanda publicou recentemente um artigo no qual insere a atuação de grupos como o Donme no conceito de “má sociedade civil”. Cunhado em 2001 pelos pesquisadores Simone Chambers e Jeffrey Kopstein, o termo se refere a um tipo de atuação no qual movimentos ou associações buscam enfraquecer a democracia, os direitos humanos e o pluralismo político.
“Essas associações podem reduzir a influência de grupos menores ou com menor poder econômico ao monopolizar redes de influência ou defender pautas que levam à diminuição dos direitos de determinados grupos”, diz o documento.
A pesquisa apresenta uma lista de entidades que eram filiadas à associação De Olho no Material Escolar entre os anos de 2021 e 2023. Algumas delas: Associação Brasileira do Agronegócio, Associação Paulista de Criadores de Suínos, Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (eufemismo para agrotóxicos). Há também fazendas e empresas – nenhuma delas da seara educacional.
O patrimônio líquido da Donme em 2024 era de R$ 1,5 milhão – valor relativamente baixo, mas que faz sentido diante do fato de que o grosso da coordenação é formada por figuras endinheiradas do agronegócio que trabalham na associação de forma voluntária.
“Eles têm incidência em todos os níveis da federação — da União aos municípios — e em todos os poderes, com foco maior em executivos subnacionais e no legislativo federal, tendo ampliado e aprofundado seus trabalhos nos anos recentes”, diz o documento, em outro trecho.
Em entrevista ao Observatório do Clima e ao Intercept, Pellanda disse que esses movimentos ainda não conseguem converter seus esforços em mudanças estruturais no contexto da educação. Ela teme, porém, que seja apenas uma questão de tempo. “À medida que vão desgastando pelas beiradas, o texto da lei vai ficando cada vez mais retrógrado em termos de direito, o que se aplica não só ao direito à educação, mas também aos direitos ambientais e climáticos. Eu acho que este é um ponto muito preocupante, de médio a longo prazo”, avaliou.
Para se cacifar, a Donme passou a contar com consultorias da professora Guiomar de Mello, que foi secretária de Educação de São Paulo durante a prefeitura de Mário Covas, e Elizabeth Guedes, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares.
Elizabeth é irmã do ex-ministro da Economia Paulo Guedes, aquele que sugeriu solucionar o problema da fome com restos de comida de restaurantes. Guiomar é uma figura com um passado de prestígio na área da educação, que nos últimos anos passou a publicar textos em defesa de Jair Bolsonaro em suas redes sociais.
A presidência da Donme teve encontros com o deputado federal Arthur Lira, do Progressistas de Alagoas, e o senador Rodrigo Pacheco, do Partido Social Democrático, de Minas Gerais, na época em que presidiam Câmara e Senado. “Foi uma odisseia de idas a Brasília para defender nossas pautas”, disse Henrique Silveira. “Falamos com deputados das mais diferentes frentes. Do agronegócio à educação. Também fomos muito no Tribunal de Contas da União, o TCU, para construir ferramentas de análise do orçamento na parte educacional”.
As emendas não tratam explicitamente do agronegócio. “Mas batemos na porta do agro para pedir ajuda para que as pautas andassem”, alega.
Ele diz que o próximo passo da associação será olhar para os planos estaduais e municipais. “Já temos parcerias com secretarias de São Paulo, Paraná e Minas Gerais”, afirma. Em seu site, a Donme explica, em um texto, que “os gestores municipais precisam do apoio da sociedade civil para transformar a educação”, e que “federações e sindicatos rurais podem e devem se aproximar, apoiar e participar dos governos municipais.”
“A gente quer mostrar para o gestor público municipal como ele pode construir uma educação melhor”, diz Silveira. “Nós [da cidade] não conseguimos chegar lá, mas o nosso braço do agro consegue”, conclui.
Esta matéria também foi publicada no Intercept Brasil.