Kim Kataguiri, do DEM-SP, relator da lei de licenciamento - Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

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Agromitômetro: licenciamento ambiental

Checamos os principais argumentos do deputado Kim Kataguiri para enfraquecer a lei de licenciamento – e explicamos por que eles não param de pé

19.08.2019 - Atualizado 11.03.2024 às 08:29 |

DO OC – A Câmara dos Deputados pode votar nos próximos dias o projeto de Lei Geral de Licenciamento Ambiental. É possivelmente a lei ambiental mais importante do país, já que visa regular qualquer atividade econômica com impacto no meio ambiente, na saúde e na segurança das pessoas.

Após dois anos de negociações fracassadas entre o governo Temer e a bancada ruralista, que buscava uma lei que extinguisse na prática o licenciamento para a agropecuária, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) matou o assunto no peito. Entregou a relatoria do projeto ao apadrinhado Kim Kataguiri (DEM-SP), que, após muito debate, dez audiências públicas e três versões, entregou um texto-surpresa, criticado por especialistas, pela comunidade científica e pela sociedade civil, que acusa Kim de quebra de acordo.

A quarta versão é, mais uma vez, resultado de pressão dos ruralistas, a quem relator tem dado atenção especial – marcou presença em almoços organizados pela Frente Parlamentar da Agropecuária e vem mantendo mantendo interação frequente com assessores técnicos do Instituto Pensar Agro, o braço institucional do lobby ruralista. Mas há também generosos acenos à Confederação Nacional da Indústria e ao ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas.

Kim e os ruralistas vêm defendendo o projeto contra o que eles argumentam serem “fake news” de seus opositores. Nesta edição do Agromitômetro, a segunda dedicada ao licenciamento ambiental, passamos algumas alegações do relator no nosso detector de agrocascatas. E explicamos por que elas não param de pé.

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“Hoje não existe legislação geral para regulamentar o licenciamento ambiental, o que resultou em mais de 70 mil leis ambientais, gerando insegurança jurídica e confusão” [1]

FALSO – É difícil saber de onde Kim tirou esse número, a menos que esteja aderindo à moda do governo federal de dizer qualquer coisa e depois falar que estava brincando. O licenciamento ambiental é objeto de um dispositivo da Lei 6.938/1981, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (art. 10) e consta na divisão de atribuições entre os entes federados trazida pela Lei Complementar 140/2011. Há atualmente 42 resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em vigor que incluem regras gerais ou setoriais sobre licenciamento ambiental. Somando-se esses atos normativos e mais uma ou outra referência a licença em leis como a Lei da Mata Atlântica ou em decretos presidenciais, podemos pressupor que tenhamos cerca de 50 regulações editadas pela União – um número três ordens de grandeza menor que o estimado pelo deputado. Para alcançar 70 mil, cada um dos 27 Estados e 5.570 municípios teria de ter 12 leis sobre licenciamento ambiental.

Licenças ambientais podem custar até 27% do empreendimento, muitas vezes inviabilizando a atividade [2]

FALSO – As taxas cobradas pelos órgãos ambientais para análise e emissão da licença não chegam nem perto de um percentual como o mencionado por Kim. O número citado pelo parlamentar, que se baseia em documento da Frente Parlamentar da Agropecuária, refere-se a todos os gastos com os estudos e implantação dos programas socioambientais inclusos como condicionantes das licenças e, provavelmente, foi obtido neste documento, que não inclui a fonte dos dados.

É muito difícil fazer essa conta, já que os empreendimentos diferem entre si. Considerando as usinas hidrelétricas implantadas no país, que estão entre os empreendimentos com maior número de condicionantes, estudo do Banco Mundial que analisou 66 delas fala em custos de 12% para os programas socioambientais. De resto, se o valor da prevenção, mitigação e/ou compensação de impactos de uma obra é alto demais, isso não é sinal de que a legislação está errada e sim de que a obra é ambientalmente inviável.

O órgão ambiental não tem prazo para se manifestar, o que além de atrasar a obra também incentiva a corrupção [3]

FALSO – Não há prazos definidos em lei federal para a emissão da licença, mas eles estão fixados por outras normas. A Resolução Conama nº 237/1997, por exemplo, estabelece que o órgão ambiental competente poderá estabelecer prazos de análise diferenciados para cada modalidade de licença, desde que observado o prazo máximo de seis meses a contar do ato de protocolar o requerimento. Se houver EIA/RIMA e/ou audiência pública, o prazo é esticado para até 12 meses. No licenciamento ambiental federal a cargo do Ibama, a Instrução Normativa nº 184/2008 estabelece que o prazo para a análise técnica do EIA/RIMA será de 180 dias, contados a partir do aceite do estudo. Auditoria recente do Tribunal de Contas da União em 32 processos concluiu que o Ibama conseguiu cumprir os prazos de análise do EIA em 75% dos processos de empreendimentos de transmissão de energia. O TCU concluiu também que há demora por parte dos empreendedores em promover as correções necessárias nos estudos ambientais, o que contribui para o alongamento do prazo de concessão das licenças prévias. Há, sim, atrasos – decorrentes da má qualidade de parte dos estudos, do número insuficiente de técnicos nos órgãos ambientais e de outros fatores que não serão solucionados com a Lei Geral simplesmente fixando prazos taxativos.

A sugestão de Kim de que os atrasos estão associados à corrupção dos servidores dos órgãos licenciadores é inverificável – na ausência de evidências, trata-se apenas de difamação.

“Licenciamento ambiental não tem nada a ver com índios ou desmatamento” [4]

FALSO – O deputado Kim Kataguiri usa um truque retórico à la Ricardo Salles para defender um licenciamento ambiental que desconsidere impactos indiretos, por isso a referência simplista ao desmatamento. Com isso, no licenciamento da implantação ou pavimentação de uma rodovia em área de florestas, como a BR-319, (Porto Velho-Manaus), o aumento da destruição que sempre acompanha esse tipo de obra seria simplesmente ignorado no licenciamento.

Ignorar impactos indiretos, contrariando os especialistas no tema, é um presentão para os empreendedores, que se livram de arcar com medidas para enfrentar problemas complexos gerados pela implantação e operação das obras – como aumento populacional, violência, colapso dos sistemas de saúde e, claro, desmatamento. A conta seria passada para o poder público.

Kim disse ao jornal O Estado de S.Paulo: “Não acho que tentar solucionar isso via licenciamento ambiental seja a solução, mesmo porque é o que se tenta fazer hoje e não dá certo. O que a gente tem é o pior dos dois mundos, que é desmatamento e burocracia. Então, tanto o meio ambiente sai prejudicado quanto os empreendimentos saem prejudicados”. Há confusão deliberada nesta afirmação: o governo não tenta resolver o desmatamento por meio do licenciamento. O licenciamento existe para evitar que obras causem degradação ambiental, incluindo mais desmatamento. Há (ou havia, antes de Bolsonaro) políticas públicas de controle do desmatamento, que não se confundem com as atribuições dos órgãos ambientais de licenciar empreendimentos nos casos requeridos pela legislação.

Sobre indígenas e quilombolas, a proposta do relator propõe que a Funai e a Fundação Palmares só sejam ouvidas se as obras impactarem terras indígenas em adiantado processo de formalização e territórios quilombolas titulados. Segundo dados levantados pelo Instituto Socioambiental, 163 terras indígenas (22% do total) e 1.514 territórios quilombolas (86% do total) seriam desconsiderados no licenciamento ambiental. Segundo o relator: “Se existe um problema, um gargalo para formalização de terras indígenas, quem precisa ser pressionada é a Funai. Feito isso, vamos escutar no licenciamento ambiental”. A lógica dessa argumentação subordina os direitos dos indígenas e quilombolas, que são assegurados pela Constituição e pela Convenção 169 da OIT, a formalizações que não dependem dessas populações. Se o licenciamento ambiental desconsiderar os direitos de indígenas e quilombolas, o resultado será uma chuva de ações na Justiça, um tiro no pé de quem quer uma Lei Geral para “agilizar” licenças.

A dispensa de licença prevista na proposta do relator é apenas para tapar buracos e instalar drenagem e sinalização em estradas [5]

FALSO – A quarta versão da proposta do Relator dispensa de licença “serviços e obras direcionados à melhoria, modernização, e manutenção de infraestrutura de transportes em instalações pré-existentes ou em faixas de domínio e de servidão, incluindo dragagens de manutenção”. Os conceitos de melhoria, modernização e manutenção não estão inclusos na proposta. Há omissões nas explicações de Kim sobre esse dispositivo. Ele não abrange apenas rodovias, mas também ferrovias, hidrovias, aeroportos e portos. Ele também libera de licença a melhoria, modernização e manutenção mesmo de empreendimentos que nunca foram licenciados. Para justificar a dispensa de licenciamento, seria necessário que os impactos associados aos empreendimentos fossem claramente irrelevantes, o que está longe de poder ser afirmado com a redação vaga do projeto.

O licenciamento ambiental é responsável pela paralisação de obras de saneamento ambiental [6]

APENAS PARE – O Brasil tem déficits inaceitáveis na coleta e tratamento de esgotos e outros serviços de saneamento ambiental. Mas o licenciamento não é responsável por 52% da população não ter acesso à coleta de esgotos ou por apenas 45% dos esgotos do país serem tratados. Simplesmente falta dinheiro. O governo federal estima que são necessários R$ 600 bilhões para a universalização dos serviços de saneamento básico no país.

A informação das 173 obras paralisadas apresentada por Kim Kataguiri vem de uma reportagem sobre obras com recursos do extinto Ministério das Cidades que, pelo menos em tese, já têm licença – do contrário, não poderiam ter sido iniciadas, bidu. Ao criar uma narrativa que coloca no licenciamento ambiental responsabilidades que ele não tem, Kim vende falsas soluções. Priorizar os processos do setor nos órgãos ambientais, como proposto pelo deputado, parece razoável diante da importância do saneamento ambiental, mas o que falta realmente para o setor é investimento.

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[1] http://deputados.democratas.org.br/noticias/kim-kataguiri-revela-mudancas-no-relatorio-do-licenciamento-ambiental-mas-rebate-criticas-a-materia/

[2] https://www.instagram.com/p/B1MsoHqJMYg/?igshid=1i2r7vv3x5iad

[3] https://www.instagram.com/p/B1MsoHqJMYg/?igshid=1i2r7vv3x5iad

[4] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,licenciamento-ambiental-nao-tem-nada-a-ver-com-indios-ou-desmatamento-diz-kim-kataguiri,70002961376

[5] https://www.instagram.com/p/B1MsoHqJMYg/?igshid=1i2r7vv3x5iad

[6] https://twitter.com/kimpkat/status/1161304244605112320

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