Força Nacional e ocupação indigena do canteiro de obras de Belo Monte (Foto: Ruy Sposati/Agência Raízes)

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Por que o setor elétrico ainda flerta com o autoritarismo?

Artigo de Sérgio Guimarães e Carlos Rittl no jornal El País

07.06.2018 - Atualizado 11.03.2024 às 08:28 |

SÉRGIO GUIMARÃES
CARLOS RITTL
EL PAÍS

Em seu fabuloso e deprimente livro “Os fuzis e as flechas” (Companhia das Letras, 2017), o jornalista Rubens Valente relata como uma obra “de interesse nacional”, a rodovia Manaus-Boa Vista, quase causou o extermínio dos índios waimiri-atroari, no norte do Amazonas. A abertura da estrada que cortou o território waimiri, iniciada no fim dos anos 1960 e concluída na década seguinte, levou o Exército ao local e ao uso desproporcional da força contra os índios. Entre tiros, bombas e doenças, estima-se que mais de 2.000 waimiris tenham morrido.

Ainda em penosa recuperação, a etnia voltou ao noticiário no mês passado, quando a imprensa revelou pressões do ministro de Minas e Energia, Wellington Moreira Franco (MDB-RJ), para passar a linha de transmissão da usina de Tucuruí por dentro do território daqueles índios, sem consultá-los. O truque seria fazer o Ministério da Defesa decretar o linhão (outro projeto polêmico, que há anos não sai porque o governo tem se negado a dialogar com os waimiris) obra de “interesse da política de defesa nacional”, o que dispensaria permissão da tribo. A justificativa é conectar o Estado de Roraima, que tem sofrido com apagões, ao sistema elétrico nacional. Valor da obra: R$ 2 bilhões.

Os generais Médici e Geisel, de onde estiverem, devem estar dando risada: temos aqui, vejam só, um membro do partido que lutou contra a ditadura repetindo um velho argumento utilizado por eles para cometer uma nova arbitrariedade contra as mesmas vítimas do autoritarismo.

O linhão de Tucuruí não é um caso isolado, ao contrário. Até uma vítima da ditadura, a ex-presidente Dilma Rousseff, prestou homenagem aos militares ao empurrar goela abaixo do país, em nome do tal “interesse nacional”, a usina hidrelétrica de Cararaô, um projeto nascido no regime autoritário e rebatizado como Belo Monte.

Desde o segundo governo Lula, quando o Estado recuperou sua capacidade de investimento, todos os presidentes buscaram realizar a distopia verde-oliva de transformar a Amazônia no celeiro elétrico do país. Santo Antônio e Jirau, Teles Pires, São Manoel, Belo Monte – todas as usinas instaladas na região na última década e meia seguiram o mesmo roteiro de desrespeito a povos tradicionais, licenciamento na mão grande e transparência zero sobre custos econômicos e socioambientais. A maré barrageira foi suspensa em 2016, quando a falência do governo permitiu ao Ibama engavetar mais um elefante branco, a usina de São Luiz do Tapajós. Pelo visto, o MDB acha que dá para decretar o fim desse interregno e voltar ao modus operandi que impera no setor há mais de 40 anos.

O fetiche de sucessivos governos com grandes obras de energia na Amazônia talvez encontre sua melhor explicação na Operação Lava Jato. Após a prisão de construtores de barragens em 2014, foi revelado pela PF e pelo Ministério Público que projetos como Belo Monte engordaram os caixas de campanha dos partidos consorciados no governo federal, em especial PMDB e PT. Revelou-se também que a famosa “crise do bagre”, argumento usado pelo então presidente Lula para forçar (contra parecer do Ibama) a aprovação das usinas do Madeira, fora inventada pelo empreiteiro-mor da República, Emílio Odebrecht. Fazer mais uma obra bilionária na Amazônia depois de tudo isso, ainda mais no Estado do senador emedebista Romero Jucá – aquele que queria “estancar a sangria” da Lava Jato – pode levantar a suspeita de que nossos agentes públicos não aprenderam a lição.

O Estado de Roraima, para o qual o atual ministro de Minas e Energia defende a solução autoritária, tem um problema real. Roraima recebe energia elétrica gerada em hidrelétricas da Venezuela, através de um contrato que expira em 2021, ainda sem definição sobre renovação. Entretanto, problemas de manutenção e gestão do sistema elétrico venezuelano resultam em cortes no fornecimento, causando apagões e demandando o acionamento cada vez mais frequente de usinas térmicas a diesel.

Mas a linha de transmissão não é a única proposta do governo para resolver o problema de Roraima. Uma alternativa seria a construção da hidrelétrica do Bem Querer – a maior em licenciamento na Amazônia. Essa usina seria a mais cara e menos eficiente do século 21, construída em um local tão plano que seu lago teria 130 quilômetros de comprimento, mesmo sendo “a fio d’água”, ou seja, sem grande reservatório. Apesar disso, em fevereiro de 2018 o governo federal contratou as empresas para a elaboração do seu estudo de impacto ambiental, tentando transformar em realidade outro sonho gestado no período da ditadura.

A população de Roraima merece energia barata, abundante e limpa. E existem boas alternativas para provê-la. Técnicos do próprio MME já desenham desde 2017 um programa para levar ao Estado a fonte que mais cai de preço nos leilões de energia hoje no Brasil, a solar. Dados compilados pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente indicam uma forte tendência de queda de preços da energia do sol e da eólica frente às hidrelétricas desde 2011. Na última vez que cada uma das três fontes foi leiloada, o valor final do megawatt-hora foi de R$ 158 para hidro, R$ 145 para solar fotovoltaica e R$ 98 para eólica. Os preços das novas renováveis devem continuar caindo à medida que elas incorporam mais tecnologia.

Moreira Franco e o governo Temer fariam bem em explicar a quantas anda esse plano e por que resolveram decretar, em pleno ano eleitoral, que uma linha de transmissão que está no papel há anos de repente virou tema de “segurança nacional”. Os waimiri-atroari e os contribuintes brasileiros querem saber.

Sérgio Guimarães é membro do ICV (Instituto Centro de Vida) e coordenador do GT Infraestrutura

Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima

Este artigo foi publicado originalmente no jornal El País.

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