O ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho (Foto: Luís Macedo/Câmara dos Deputados)

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Sarney acusa golpe ruralista em licenciamento

Projeto apresentado pela Frente Parlamentar da Agropecuária na quarta-feira permite até pavimentação de estrada na Amazônia sem licença; ministro fala em “quebra de confiança”

10.04.2017 - Atualizado 11.03.2024 às 08:28 |

CLAUDIO ANGELO
DO OC

O caldo entornou no processo já bem complicado de construção de uma proposta de lei geral do licenciamento ambiental. Na última quinta-feira (6), um texto apresentado pela bancada ruralista fez o ministro Sarney Filho (Meio Ambiente) interromper uma reunião de discussão do projeto, acusando os parlamentares de “quebra de confiança”. O debate, que já estava adiantado entre a área ambiental do governo e a Câmara dos Deputados, voltou à estaca zero.

O texto que causou cizânia circulou ainda pela manhã, distribuído por e-mail para os participantes da reunião pelo coordenador técnico da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), Gustavo Carneiro. Ele traz uma série de retrocessos em relação à versão que vinha sendo negociada entre Sarney e representantes da FPA e da indústria.

É uma espécie de lista de desejos de fazendeiros, empreiteiros e outros atores do setor produtivo: caso seja aprovado, até mesmo pavimentação de estradas na Amazônia poderá ser feita sem necessidade de licença ambiental.

À tarde, após ler o documento, Sarney abriu a reunião com representantes da FPA, da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), CNI (Confederação Nacional da Indústria) e Ibama no ministério furioso.

Afirmou que havia sido quebrado o acordo construído entre essas entidades e o governo, segundo o qual uma única proposta de lei de licenciamento seria redigida pelo Ministério do Meio Ambiente, contemplando pontos de interesse do agronegócio, da indústria e dos ambientalistas. Encerrou a conversa em cerca de 15 minutos.

Além de irritar o ministro, a proposta causou estranhamento até mesmo entre membros da bancada ruralista, que trabalhavam nos ajustes finais da proposta juntamente com Sarney e a presidente do Ibama, Suely Araújo.

O deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), relator do projeto conhecido como “licenciamento flex”, disse não saber de onde veio a nova proposta.

“Estamos há dois meses fazendo uma reunião por semana e acertando ponto a ponto do relatório. Não tem outra proposta [além da que está sendo negociada com Sarney].” No dia da reunião, Pereira estava em São Paulo com o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB-RS). “Se eu estivesse lá não teria acontecido nada disso”, afirmou. No entanto, o deputado atribuiu a irritação do ministro do Meio Ambiente ao “estresse da semana”.

O projeto relatado por Mauro Pereira na Câmara, ao qual o Ministério do Meio Ambiente busca fazer frente, deixa na mão de Estados e municípios a definição do rigor do licenciamento. Para a área ambiental, isso é inaceitável, porque causaria uma espécie de guerra fiscal entre os Estados – na qual cada um tentaria afrouxar mais do que o outro as exigências ambientais a fim de atrair empreendimentos.

No lugar disso, Sarney propôs uma lei baseada num projeto do deputado Ricardo Trípoli (SP), atual líder do PSDB. A lógica deste projeto é simplificar as licenças para empreendimentos pequenos e em regiões do Brasil onde há pouco o que proteger – um posto de gasolina na cidade de São Paulo, por exemplo, não pode ter regras de licenciamento tão rigorosas quanto uma hidrelétrica na Amazônia.

A proposta apresentada pela bancada ruralista na semana passada – que tem também digitais da CNI – não apenas deleta essa lógica “locacional” como traz de volta o pior do texto de Mauro Pereira no que diz respeito ao poder dos Estados e municípios para definir critérios de rigor. Só que ela vai muito além.

“O texto apresentado pela Frente Parlamentar da Agropecuária tem sérias inconsistências técnicas e jurídicas”, disse Suely Araújo.

O texto traz uma extensa lista de atividades que passariam a ser isentas de licenciamento. Além de toda a atividade agropecuária, também estariam dispensadas obras de captação de água, dragagem de hidrovias e “obras rodoviárias e ferroviárias de manutenção, contemplando conservação, recuperação, restauração e melhoramentos, pavimentação e adequação da capacidade”.

Essa redação permitiria, por exemplo, que a polêmica rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), que corta uma das áreas mais preservadas da Amazônia e tem o potencial de fazer o desmatamento explodir, pudesse simplesmente ser asfaltada, sem licenciamento.

O projeto também considera toda a pesquisa mineral – até mesmo operações de sísmica de petróleo e construção de estradas para prospecção – como atividade isenta de licenciamento, e libera sua realização dentro de florestas nacionais e reservas extrativistas sem necessidade de consulta ao ICMBio (Instituto Chico Mendes).

Falando em Chico Mendes, o texto retira dos órgãos responsáveis pelas unidades de conservação a prerrogativa de arbitrar sobre o licenciamento de forma vinculante. Hoje, qualquer obra próxima a uma UC pode ser vetada pelo ICMBio. A proposta ruralista derruba esse poder.

Outro detalhe mortal: pendengas com obras paradas, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte, objeto de uma série de contestações do Ministério Público, não seriam mais resolvidas na Justiça e sim por uma “câmara de arbitragem”. Trata-se de um instrumento criado no direito comercial para resolver questões entre entes privados, mas que não se aplica a direitos coletivos – como é o caso do meio ambiente.

“Do jeito que está, a proposta não garante nem a proteção ambiental, nem a agilidade do licenciamento, porque certamente será objeto de contestações judiciais”, afirmou a presidente do Ibama.

“A insegurança jurídica vai continuar e o nó do Brasil vai prosseguir”, declarou Ricardo Trípoli ao OC. “Quem está atrapalhando o desenvolvimento do Brasil são eles [ruralistas], não nós.”

Procurada pelo OC, a FPA disse que não comentaria o episódio.

* Atualizado às 7h10 para corrigir data no primeiro parágrafo.

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