DeBoer e equipe durante filmagem em Kiribati (Foto: Divulgação)

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‘Oposição a Trump pode unir sociedade’

Cineasta que documentou impacto da mudança climática sobre Kiribati, sua terra natal, diz que negacionismo do presidente será prejudicial aos EUA, mas dá maior oportunidade em décadas a movimentos sociais

24.01.2017 - Atualizado 11.03.2024 às 08:27 |

CAMILA FARIA
DO OC

De todos os americanos que choraram após a eleição de Donald Trump, poucos tiveram tantos motivos para fazê-lo quanto Lulu DeBoer, 26. A cineasta texana sabia que o negacionismo da mudança climática esposado por Trump e seu gabinete condenariam à extinção o arquipélago de Kiribati, no Pacífico, onde ela nasceu e onde sua família ainda vive.

Kiribati é uma das pequenas nações insulares ameaçadas pela elevação do nível do mar. Segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática), um aquecimento global superior a 2oC poderia desestabilizar os mantos de gelo da Groenlândia e do oeste antártico, causando uma subida nos oceanos de quase 1 metro que essencialmente varreria o país do mapa.

Os governos de Kiribati e de outros países-ilhas lideraram na conferência de Paris, em 2015, uma coalizão com o objetivo de aumentar a ambição do tratado internacional contra a mudança climática. Conseguiram inscrever no texto do Acordo de Paris a meta de tentar frear o aquecimento global em 1,5oC. Esse objetivo se tornou mais distante em 8 de novembro último, quando Trump foi eleito, e mais distante ainda na última sexta-feira, quando ele tomou posse jurando eliminar o Plano de Ação Climática dos EUA.

Criada no que ela chama de “coração petroleiro do Texas”, onde a negação do aquecimento impera, DeBoer resolveu documentar a agonia de sua ilha e de seus parentes. Voltou a Kiribati com uma câmera na mão para produzir o curta-metragem Carta de Amor a uma Ilha, lançado em 2016. O filme participou do festival Film4Climate, do Banco Mundial, e foi exibido em Marrakesh durante a COP22. Ele agora é exibido pelo OC na série O Clima Vai ao Cinema, em parceria com o Film4Climate.

“Chorei quando vi o resultado das eleições, mas acredito que essa presidência pode unir movimentos sociais de uma forma como não se vê desde os anos 1970”, disse DeBoer, em entrevista ao OC. “Se pudermos enquadrar mudanças climáticas fora do ponto de vista de valores liberais e mostrar que investir em tecnologia limpa é o futuro da economia global, vamos conseguir encontrar pontes que unam a atual América, socialmente dividida.”

Leia a entrevista.

*

Como você entrou em contato pela primeira vez com a questão climática?

A primeira vez que ouvi falar em mudanças climáticas foi aos 11 anos, na véspera de Ano Novo do ano 2000. Naquela noite, minha terra natal foi vista pelo mundo todo [Kiribarti está perto da Linha Internacional da Data e foi apresentada na televisão durante a virada como a primeira nação a receber o novo milênio]. Apesar de ter sido um momento importante para a cultura de Kiribati, lembro que um apresentador de TV anunciou casualmente que o lindo símbolo de paz e união para o futuro, a “Ilha do Milênio”, seria destruída durante meu tempo de vida por causa de mudanças climáticas. A pior parte foi ver como essa notícia pareceu trivial e distante para todo mundo, menos para mim.

Como você agiu a partir dessa percepção?

Primeiramente, pesquisei para entender mais sobre o assunto. Mas conforme os anos se passaram e meus amigos de Kiribati me enviavam pelo MySpace fotos da erosão extrema da costa, senti uma necessidade maior de entender e explicar o perigo imediato das mudanças climáticas. Eu fui criada em uma cidade pequena e rural no Texas, e meus professores, líderes religiosos e membros da comunidade acreditavam que mudanças climáticas eram uma farsa inventada por liberais. Durante o ensino médio, cheguei a discutir com um professor de geografia, que fez uma piada sobre minhas ilhas desaparecerem por causa de “mudanças climáticas” míticas. Nesse momento eu comecei a pensar que precisávamos de um filme, algo que as pessoas assistissem e que mostrasse a elas que mudanças climáticas eram reais. Quando Uma Verdade Inconveniente foi lançado, porém, as pessoas ao meu redor ainda não acreditavam.

Esse foi o momento em que você decidiu fazer um filme?

Em 2009, eu estava no fim do Ensino Médio e meu objetivo era fazer um documentário sobre mudanças climáticas que separasse o assunto do viés político e científico, porque uma história com um enfoque mais humano parecia a única maneira de me comunicar com a minha comunidade no Texas. Então, durante anos, tentei sem sucesso conseguir fundos para realizar meu documentário, Millenium Island [A Ilha do Milênio]. Quando me formei em Stanford, consegui meu primeiro financiamento de pesquisa e desenvolvimento. Desde 2015, estive em Kiribati gravando, me voluntariando para um projeto de energia solar e vivendo essa realidade em primeira mão. Mas esse dinheiro foi embora rápido e todos os projetos de financiamento desde então não foram frutíferos. Quando ouvi falar da iniciativa Film4Climate, soube que precisava dessa publicidade para trazer interesse sobre Millenium Island. Então, transformei filmagens do trailer do documentário em um curta metragem, e o narrei como uma carta de amor a uma ilha.

O curta trouxe a repercussão que você esperava para seu projeto?

A resposta tem sido incrível, validou a premissa do documentário. Minha família aceitou que meus anos na escola de cinema em Stanford não foram uma perda de tempo e que sou uma cineasta. A população em Kiribati está orgulhosa, o filme foi parar em jornais de grande circulação. E os amigos do Texas assistiram, e alguns estão se abrindo para mudar de ideia sobre o tema.

Como você se sente a respeito da nova presidência dos Estados Unidos e o ceticismo em relação ao clima representado por ela?

Como mulher e cidadã dos EUA, chorei quando vi o resultado das eleições. E, por mais que seja fácil de se desesperar, acredito que essa presidência pode unir movimentos sociais de uma forma como não se vê desde os anos 1970. Neste momento, as políticas de Trump para retomar investimentos em combustíveis fósseis não só vão retroceder o progresso climático americano, mas vão segurar progresso econômico. Se pudermos enquadrar mudanças climáticas fora do ponto de vista de valores liberais e mostrar que investir em tecnologia limpa é o futuro da economia global, vamos conseguir encontrar pontes que unam a atual América, socialmente dividida.

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