Arraia nada entre corais mortos por calor excessivo do mar na Austrália (Foto: The Ocean Agency/XL Catlin Seaview Survey)

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Aquecimento vira ecossistemas do avesso

Estudo internacional mostra como as mudanças climáticas já estão bagunçando a distribuição de espécies no planeta e deixando os seres humanos mais doentes e mais famintos

30.03.2017 - Atualizado 11.03.2024 às 08:28 |

LUCIANA VICÁRIA
DO OC

Um amplo estudo divulgado nesta quinta-feira (30) revela como as alterações no clima estão modificando de maneira acelerada os ecossistemas da Terra, a ponto de mudar radicalmente suas características originais e aumentar a vulnerabilidade da nossa própria espécie. Cientistas de universidades brasileiras, americanas, europeias e australianas previram um número maior de epidemias, devido ao deslocamento dos mosquitos; um novo desenho da geografia agrícola, pela falta de polinizadores; e migrações de comunidades tradicionais inteiras, em busca de alimentos.

Todos os seres vivos, sem exceção, são sensíveis às mudanças climáticas. A história da vida na Terra está intimamente ligada a essas alterações. Ao longo de milhares de anos as espécies se remodelaram em resposta a eventos tectônicos, oceanográficos e climáticos. As mudanças projetadas para o século 21, no entanto, com a emissão excessiva de gases de efeito estufa, já se comparam às maiores mudanças globais dos últimos 65 milhões de anos. “Significa dizer que a resposta biológica vai acontecer em ritmo mais violento e em escala global”, diz Raquel Garcia, pesquisadora brasileira da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e uma das autoras do estudo.

As mudanças, de fato, já acontecem em larga escala. Registros recentes mostram que dezenas de espécies de peixes de águas rasas se deslocaram para águas mais profundas à procura de temperaturas amenas. Mamíferos que viviam em encostas de montanhas migraram para regiões mais elevadas. “São alterações aparentemente sutis, mas que geram uma reação em cadeia poderosa”, diz Garcia, especialista na relação entre biodiversidade e mudanças climáticas. De acordo com ela, em um novo ambiente, as espécies passam a apresentar novas respostas biológicas a essa interação. E as mais sensíveis entram, rapidamente, em um processo que leva à extinção.

Mosquito

Mosquito “Anopheles”, transmissor da malária, cuja área de distribuição cresce com o calor (Foto: Anders Lindström’SVA)

Embora pareça improvável, o deslocamento das espécies e a transformação do ecossistema nos afeta diretamente. O aquecimento global tem facilitado, especialmente, a proliferação de agentes patogênicos pelo planeta. Vetores que causam epidemias como a malária, a dengue a e zika devem se tornar ainda mais comuns e atingir populações inteiras – suspeita-se que a epidemia de zika de 2015, por exemplo, tenha relação direta com o aquecimento anormal agravado pelo El Niño. Além disso, a cultura de alguns alimentos sensíveis, como o café, também está sob forte ameaça, à medida que as distribuições de polinizadores migram e as pragas das plantas perdem os predadores.

As consequências podem afetar regiões turísticas do Mediterrâneo, que devem receber uma grande quantidade de águas-vivas, inviabilizando os banhos de mar. Comunidades indígenas dos extremos da Terra terão de encontrar alternativas à falta de peixe, já que os cardumes vêm sendo deslocados devido ao aquecimento da água. “Haverá consequências culturais, sociais e econômicas a uma parcela representativa da população mundial, algo que ainda não experimentamos, e nem sempre as soluções possíveis terão efeito a curto prazo”, disse a pesquisadora australiana Gretta Pecl, que liderou o estudo.

O próprio clima sofre as consequências das mudanças climáticas. O rearranjo das espécies transforma os processos de sequestro de carbono. O aumento da temperaturas associado às secas aumenta o estresse das plantas, contribuindo para surtos de pragas e de árvores mortas. Estes processos, por sua vez, aumentam a quantidade de material inflamável nas florestas, facilitando incêndios e jogando ainda mais carbono de volta ao ambiente.

O próprio Atlântico Norte, que armazena cerca de 25% do CO2 antropogênico do oceano, pode sofrer alterações do fitoplâncton (microrganismos que produzem oxigênio e sequestram gás carbônico) devido ao recuo do gelo marinho do Ártico. Com isso a tendência é que a bomba biológica perca eficiência. Bomba biológica é um processo através do qual o carbono da atmosfera terrestre é incorporado e armazenado no oceano profundo, por meio de processos como fotossínteserespiração, alimentação e decomposição.

Só há uma forma de evitar que essas transformações se tornem ainda mais dramáticas: é preciso reduzir a emissão de gases de efeito estufa. O processo já desencadeado pelo aumento da temperatura global está em curso. O clima vai mudar nos próximos cem anos e além, mesmo que as emissões se estabilizem, devido à inércia do processo. As espécies continuarão a responder, muitas vezes, com consequências imprevisíveis. Mas sem controle de emissões, as consequências serão ainda piores. É por isso que se diz que algumas regiões devem sofrer alterações mais intensas do que outras. “As nações em desenvolvimento, particularmente as mais próximas ao equador, provavelmente sofrerão maiores extinções locais relacionadas ao clima e nem sempre terão os recursos ideiais para lidar com a mudança”, diz Pecl.

O aumento da conscientização e uma governança integrada é a única chance de minimizar as consequências negativas e criar oportunidades a partir do movimentos de espécies, concluem os autores. A Finlândia, pioneira na mitigação desse fenômeno, introduziu medidas de adaptação para ajudar a sobrevivência do salmão no Atlântico, devido ao aquecimento das águas. A humanidade aguarda mais ações como esta.

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