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O clima após Trump: um guia para os perplexos

Saiba quais são as implicações políticas da saída da maior economia do mundo do Acordo de Paris e o que ela significa para o combate ao aquecimento da Terra

31.05.2017 - Atualizado 11.03.2024 às 08:28 |

DO OC

A notícia de que Donald Trump teria batido o martelo pela saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris se espalhou como fogo em barril de petróleo desde que foi publicada pela primeira vez, na manhã desta quarta-feira (31), pelo site noticioso americano Axios. Ainda pela manhã, fontes na Casa Branca confirmaram a informação a diversos outros veículos, até que o próprio presidente correu para seu meio de comunicação favorito, o Twitter, para desautorizar a mídia: “Vou anunciar decisão sobre o Acordo de Paris nos próximos dias”. Mas deixou uma pista agourenta no fim do tuíte: “Tornar a América grande novamente”.

A virtual saída do acordo não é grande surpresa para quem acompanha os passos do líder americano. Trump, afinal, se elegeu sob a promessa de “cancelar” o Acordo de Paris, e desde sua posse já deixou claro que acha de verdade que o aquecimento global é uma “fraude” para prejudicar a economia dos EUA: cortou programas de ciência climática e o orçamento da EPA (Agência de Proteção Ambiental), e autorizou a agência a matar o Plano de Energia Limpa de Barack Obama, principal instrumento de cumprimento da NDC, a meta americana no acordo do clima.

Mesmo assim, a decisão de Trump tem repercussões sérias para o Acordo de Paris e para o resto do mundo. Entenda nas perguntas e respostas abaixo o que a saída americana pode e o que não pode significar para a luta contra a crise do clima.

1 – É o fim do Acordo de Paris?

De jeito nenhum. O acordo está em vigor desde 4 de novembro do ano passado e já foi ratificado por 147 países, inclusive os EUA. Dos 196 membros da ONU, apenas dois, Síria e Nicarágua, não são partes do acordo. A saída dos EUA não tem efeito retroativo sobre a entrada em vigor, então, pelo menos do ponto de vista formal, tudo fica como está, só que com um país a menos. O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse na última terça-feira, sem citar Trump, que, se algum governo “duvida da vontade e da necessidade global desse acordo, isso é razão para os outros se unirem mais ainda” em torno dele.

2 – A decisão de sair tem efeito imediato?

Não. Pelas regras legais do Acordo de Paris, é preciso uma espécie de “aviso prévio” de três anos até que a saída de uma das partes se efetive. Nesse meio tempo, os EUA serão uma espécie morto-vivo nas negociações internacionais: seus diplomatas poderão participar das reuniões, mas não terão mais nenhuma influência nas decisões que venham a ser tomadas sobre o acordo. Um risco existente é que os EUA nesse “modo zumbi” sintam-se tentados a bloquear decisões dos outros países pelos próximos três anos – já que tudo na ONU é decidido por consenso. No entanto, os presidentes das conferências do clima também poderão se sentir livres para bater o martelo mesmo diante de objeções americanas.

3 – Qual é o impacto da saída sobre a negociação?

É imenso: os EUA são o maior emissor histórico de gases de efeito estufa e um dos principais doadores do Fundo Verde do Clima, que precisa chegar a US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020. Com os americanos fora, o mundo fica com um buraco na ambição coletiva das metas de corte de emissões e um buraco ainda maior no financiamento climático, o que elevará ainda mais a tensão que já existe entre países desenvolvidos e em desenvolvimento sobre quem paga a conta.

Outro efeito temido é que outros países sigam o exemplo dos EUA e abandonem o acordo ou reduzam a prioridade do cumprimento das suas metas – que, afinal, são voluntárias e não levam a punição caso não sejam cumpridas. Nações como a Rússia e as Filipinas já ameaçaram recuos. A liderança americana nos últimos anos também era importante para moderar países como Austrália e Nova Zelândia, tradicionalmente refratários à ação no clima. Sem ela, esses países perdem o superego, por assim dizer.

Mas o principal impacto da saída dos EUA é psicológico: muitos países recentemente “convertidos” à causa climática na época da assinatura do Acordo de Paris poderão deixar de tratar o tema como prioridade, mesmo mantendo-se formalmente fiéis ao acordo. Um exemplo claro é o Brasil, que está aumentando suas emissões.

 4 – O que acontece agora com as metas de 1,5oC e de 2oC do Acordo de Paris?

A chance de estabilizar o aquecimento em 1,5oC, que é o objetivo mais ambicioso do Acordo de Paris, fica praticamente fora de alcance. Mas isso independe da saída americana do tratado – o problema principal é que, para o mundo ter uma chance de pelo menos 50% de 1,5oC, os EUA e todos os outros países precisariam acelerar o corte de emissões nos próximos quatro ou cinco anos. A eleição de Trump e a rejeição do Plano de Energia Limpa significam que isso não vai acontecer.

A meta de segurar o aquecimento “bem abaixo de 2oC” está sob risco, mas ainda não pode ser descartada.

As metas nacionais (NDCs) apresentadas pelos países em Paris não dão conta dos 2oC: elas põem o mundo no rumo de 2,7oC a 3,1oC de aquecimento neste século e demandariam um aumento significativo da ambição. E nem mesmo elas estão garantidas: os EUA, por exemplo, precisariam de várias políticas adicionais ao Plano de Energia Limpa para cumprir sua NDC, que previa entre 26% e 28% de redução até 2025 com relação a 2005. Vários países em desenvolvimento têm metas condicionadas a financiamento externo – que, sem a contribuição dos EUA, deve minguar. Os países ficaram de se encontrar em 2018 para começar a conversar sobre o aumento da ambição das metas. Sem os EUA e sem dinheiro na mesa, não há clima para esse diálogo.

A decisão de Trump de cancelar o Plano de Energia Limpa e um outro plano de Obama que previa o aumento da eficiência dos motores de automóveis deve inverter o sinal das emissões americanas: elas vinham caindo paulatinamente, mas deverão subir ligeiramente, em 400 milhões de toneladas, até 2030.

Os 2oC ainda não estão completamente fora da mesa por causa da inesperada velocidade com que as energias renováveis vêm caindo de preço e sendo adotadas por países como Índia e China. Segundo uma análise recente do Climate Action Tracker, os dois gigantes asiáticos estão no rumo de exceder suas NDCs, e em muito: em 2030, os dois somados deverão emitir 3 bilhões de toneladas de CO2 menos do que se estimava um ano atrás, o que mais do que compensaria a reversão da curva de emissões dos EUA.

5 – Quem vai preencher o vácuo de liderança dos EUA?

A resposta é óbvia: União Europeia e China, o terceiro e o segundo maior emissor de gases de efeito estufa. A UE é tradicionalmente quem puxa por mais ambição nas negociações climáticas, e a China foi persuadida por Barack Obama e pelo mercado multibilionário de energia renovável a tornar-se mais proativa nessa agenda. A China ultrapassou os EUA como o maior investidor em energia renovável, com US$ 102,9 bilhões investidos em 2015. Até 2020, esse investimento deverá criar 5.000 empregos por dia no país. A maior indústria eólica do mundo e as seis maiores fabricantes de painéis solares são chinesas.

6 – A economia americana se beneficia com a saída do acordo?

Não, ao contrário do que diz Trump. Os empregos no setor de energia suja, como o carvão, estão escassos por razões tecnológicas – e não por imposição das renováveis ou regulação ambiental. O gás natural é mais competitivo que o carvão, segundo o Programa de Economia Ambiental da Universidade Harvard, e foi por isso que esta fonte declinou nos EUA. Nada que Trump possa fazer trará o carvão de volta. Empresas de energia renovável e eficiência energética são grandes empregadores: as indústrias eólica e solar estão criando empregos 12 vezes mais rapidamente que o restante da economia. Uma pesquisa recente sobre emprego no mundo revela que 9,8 milhões de pessoas são empregadas por energia renovável no planeta, sendo 777 mil nos EUA. O emprego da indústria solar aumentou 25% em 2016 (373.807), ultrapassando os empregos na geração de energia de carvão (86.035), extração de petróleo e gás (180 mil) e mineração de carvão (50 mil).  

  7– A saída dos EUA de Paris significa que eles estão fora de qualquer debate climático?

Não. Todos os fóruns internacionais de que os EUA participam estão envolvidos em mudanças climáticas, incluindo o G7, o G20 e a Otan. Abordar a ação climática será inevitável para eles. Especialmente do ponto de vista econômico. Por mais que a vontade de Trump não seja a de ver prosperar a matriz energética limpa, ela já se estabeleceu nos alicerces da economia americana e se tornou uma opção mais competitiva. Em outras palavras, não depende da escolha dele. A decisão de Trump teria sido um golpe fortíssimo há pouco mais de dez anos, quando as principais decisões econômicas sobre a descarbonização estavam sendo tomadas. Felizmente, no contexto atual, seu poder é limitado.

8 – Sem o governo federal envolvido, há algo que os americanos possam fazer no clima?

Sim. Pesquisa recente mostrou que 71% dos americanos são favoráveis à permanência dos EUA no Acordo de Paris. Mais da metade (55%) dos eleitores de Trump apoia as políticas atuais sobre mudanças climáticas e a expansão da energia renováveis, como a solar (84%). Então há amplo apoio popular à ação climática e rejeição às políticas do governo.

Estados americanos como a Califórnia anunciaram que devem manter suas metas de redução de gases. Massachusetts, New Hampshire e Nova York planejam reduzir as emissões em 80% até 2050, em comparação com os níveis de 1990. A cidade de Nova York anunciou que vai reduzir as emissões em 80% até 2050, e, Los Angeles, que está desenvolvendo um plano de energia 100% renovável.

9 – A relação dos EUA com os outros países sofrerá algum impacto?

Já está sofrendo, e quem viu o presidente francês Emmanuel Macron ignorar solenemente Trump na reunião do G7 sabe disso. A confiabilidade, a credibilidade e a competência do governo americano estão sendo questionadas, em parte porque a maior parte dos países está comprometida com o Acordo de Paris. O G7 criticou a falta de compromisso do governo Trump na semana passada e a chanceler alemã, Angela Merkel, sugeriu que a Europa não pode mais contar com o antigo aliado.

Eventualmente, essa desconfiança pode azedar para disputa na OMC: é cada vez maior o número de especialistas que defendem que produtos americanos intensivos em carbono sejam tarifados no futuro, num cenário em que os parceiros comerciais dos EUA adotem medidas de descarbonização.

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