Areias betuminosas em Alberta, no Canadá; país segue subsidiando extração (Foto: Environmental Defence)

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Após prometer “transição” em Dubai, países ricos dobram aposta em fósseis

Ambientalista vê "dissonância cognitiva" entre compromissos climáticos de grandes produtores de óleo, gás e carvão e suas políticas energéticas de fato 

30.01.2024 - Atualizado 14.03.2024 às 10:17 |

DO OC – Os Estados Unidos anunciaram no dia 26 de janeiro uma pausa temporária nas licenças para exportações de gás natural liquefeito (GNL). A ação barra o início da construção de 17 terminais exportadores, entre eles o Calcasieu Pass 2 (CP2), projeto na costa da Louisiana com a capacidade de canalizar, resfriar e transportar até 24 milhões de toneladas de gás por ano. A medida vale até que o Departamento de Energia reavalie as análises econômicas e ambientais que embasam as decisões.

A pausa determinada pelo presidente Joe Biden diante da pressão da sociedade civil pode ser uma boa notícia, mas ainda não coloca o país no caminho da eliminação rápida da produção de combustíveis fósseis. O compromisso do governo Biden com a agenda climática foi exaltado no comunicado publicado pela Casa Branca na sexta-feira. O mesmo texto, porém, reafirma que as exportações de GNL devem aumentar até o fim desta década.

O caso dos Estados Unidos ilustra um comportamento contraditório e a resistência dos grandes produtores de combustíveis fósseis em fazer uma transição energética eficiente e rápida, mesmo depois de terem assinado na COP28, em Dubai, o compromisso de “fazer uma transição para fora dos combustíveis fósseis”, iniciando-a nesta década.

Segundo o relatório Lacunas da Produção 2023, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), as 20 maiores potências fósseis planejam produzir cerca de 110% mais combustíveis fósseis em 2030 do que seria  compatível com a limitação do aquecimento a 1,5°C – a temperatura global do ano passado foi quase 1,48°C acima da média pré-industrial (1850-1900) –, e 69% do que seria apropriado para limitar o aquecimento a 2°C. A lista inclui ricos como os EUA, Canadá, Austrália e Noruega.

Para Amiera Sawas, chefe de pesquisa e política da Iniciativa do Tratado de Não-Proliferação de Combustíveis Fósseis, parece existir uma dissonância cognitiva nestes países entre o que está planejado e a esperança de combate às mudanças climáticas.

Liderança

Os Estados Unidos começaram a ganhar destaque na exploração de combustíveis fósseis no começo da Revolução Industrial. Em agosto de 1859, o primeiro poço de petróleo foi perfurado na Pensilvânia. A indústria petrolífera começou a crescer no país ainda na década de 1860, assim como no Canadá e na Rússia. No século 20, o petróleo ganhou força mesmo com a permanência do carvão no sistema energético.

Os americanos construíram um império no mundo dos combustíveis fósseis, com grandes empresas e um lobby influente de petroleiras no Congresso. Após a revolução tecnológica do fracking, no início dos anos 2000, o país se tornou o maior produtor de petróleo bruto do mundo, posição que mantém desde 2018. Segundo o relatório Perspectivas Energéticas de Curto Prazo, publicado em 9 de janeiro pela Administração de Informações de Energia (EIA, na sigla em inglês), a previsão da produção de petróleo bruto deve chegar a 13,2 milhões de barris por dia em 2024 e mais de 13,4 milhões em 2025, ambos novos recordes.

Neste cenário, novos projetos para exploração seguem sendo implementados, contrariando a recomendação da Agência Internacional de Energia de não abrir nenhum projeto novo de fósseis em lugar nenhum do mundo para manter o Acordo de Paris ao alcance. Em março do ano passado, a gestão Biden aprovou o Projeto Willow para a extração de combustíveis fósseis em terras federais do Alasca. A estimativa é que o projeto da petroleira ConocoPhillips extraia aproximadamente 600 milhões de barris de petróleo em 30 anos. Em dezembro, após a Justiça negar o pedido de ambientalistas e do povo indígena Iñupiat para interromper a implementação do Willow, a ConocoPhillips anunciou que daria prosseguimento ao empreendimento.

No ano passado, também foi retomada a construção do gasoduto Mountain Valley, localizado na Virgínia, para o transporte de gás de folhelho. A Suprema Corte foi a responsável pela liberação. Outro exemplo é o empréstimo de US$ 99,7 milhões para a Pertamina, petrolífera estatal da Indonésia, para a expansão de uma refinaria na cidade de Balikpapan.

De acordo com um relatório publicado em setembro pela Oil Change International, uma organização de pesquisa e comunicação sobre combustíveis fósseis, 20 países lideram a implementação de novos projetos. A primeira posição é ocupada pelos Estados Unidos. Em seguida, aparecem Canadá, Austrália, Noruega e Reino Unido.

Os Estados Unidos também são o maior produtor de gás do mundo. No ano passado, pela primeira vez se tornaram o maior exportador, fato que tem relação com a queda das exportações da Rússia devido ao conflito com a Ucrânia. O principal destino do produto tem sido o mercado europeu. Um relatório publicado em 2022 pelo consórcio Climate Action Tracker já apontava que diversos países se aproveitaram da guerra para investir mais em combustível fóssil. Canadá e Noruega são outros grandes produtores que aparecem na análise.

O relatório anual de energia publicado em março pela EIA projeta que a produção de gás nos Estados Unidos deve aumentar 15%, e as exportações, 152% até 2050. Cinco terminais de exportação estão em construção no país. A decisão de Biden da suspensão temporária não afeta os projetos já licenciados. No fim do ano, o país também destacou o crescimento de exportações de toda a América do Norte, o que inclui projetos no Canadá e no México para o seu mercado.

Nos EUA e em outros países, o gás fóssil tem sido promovido como um “combustível de transição”, por ser menos poluente que o petróleo. Ambientalistas apontam, porém, que a aposta no gás tira investimentos de renováveis e mantém o poder e o dinheiro da indústria fóssil intocados. “A dependência do gás natural como fonte de energia primária pode preservar a dependência dos combustíveis fósseis”, diz Amiera Sawas.

O carvão é o único combustível fóssil que está com produção em tendência de queda nos EUA – muito mais por causa das mudanças tecnológicas que baratearam o gás do que por vontade política de cortar emissões de carbono. Segundo a EIA, é esperado que a produção fique abaixo de 444,5 milhões de toneladas em 2024 e menos de 390 milhões de toneladas em 2025, o menor volume produzido nos Estados Unidos desde o início da década de 1960.

Por outro lado, as exportações estão em crescimento também por causa da invasão da Ucrânia. O aumento foi de 5,1 milhões de toneladas nos 12 meses após as sanções da União Europeia contra o carvão russo impostas em agosto de 2022. O salto de envios dos Estados Unidos para a Europa foi de quase 22%, 30 milhões de toneladas entre agosto de 2022 e julho de 2023 em comparação com 24,5 milhões de toneladas entre agosto de 2021 e julho de 2022.

Em paralelo, as energias limpas estão em ascensão. É previsto que a geração de energia solar cresça 75% de 2023 a 2025. Já a eólica deve aumentar 11% no mesmo período. Em 2023, as fontes eólica, solar, hidrelétrica, biomassa e geotérmica representaram 22% da geração de energia.

A Inflation Reduction Act (IRA, na sigla em inglês) é o trunfo da gestão Biden, pois incentiva a produção de energia renovável e cria empregos neste setor. A lei, no entanto, não garante qualquer redução na produção de petróleo e gás. “Mesmo que a IRA consiga reduzir o consumo de petróleo e gás nos Estados Unidos, permite que quantidades crescentes de produção de petróleo e gás sejam exportadas e queimadas em outros locais, continuando a contribuir para as emissões globais”, diz análise da Oil Change International.

Corte incompleto de subsídios

O Canadá é o quarto maior produtor de petróleo (posição almejada pelo Brasil) e o quinto de gás fóssil. É outro rico que tem apresentado propostas para a transição energética, mas ainda não acelerou para largar os combustíveis fósseis. Em julho do ano passado, o governo canadense anunciou que estava acabando com os subsídios públicos diretos ao setor internacional de combustíveis fósseis “não-mitigados” (unabated, na expressão em inglês). Isso significa que projetos com captura e armazenamento de carbono durante a produção ainda poderão ser financiados.

Os subsídios federais, especialmente os fornecidos pela agência pública Export Development Canada, também devem continuar. Um levantamento da ONG  Environmental Defence mostra que em 2022 o governo federal liberou mais de US$ 20 bilhões em subsídios e apoio financeiro a empresas de combustíveis fósseis. Do total, US$ 19,8 bilhões foram financiados por meio da Export Development Canada. Os subsídios permitirão projetos controversos como o oleoduto TransMountain. O empreendimento pode triplicar a capacidade atual de transporte de 300 mil barris de petróleo bruto por dia produzidos nas areias betuminosas na província de Alberta – consideradas o mais sujo de todos os combustíveis fósseis. O transporte deve ser feito rumo à costa do Pacífico canadense para a exportação para a Ásia e Estados Unidos.

O país também tem oito projetos para exportação de gás em desenvolvimento com um investimento de quase US$ 109 bilhões e uma capacidade para 50,4 milhões de toneladas de gás por ano. A primeira instalação de grande escala deve começar a funcionar até 2025. O restante está previsto para operar entre 2027 e 2030.

Bronwen Tucker, co-gerente de campanha de finanças públicas na Oil Change International, lembra que também existem os subsídios fornecidos pelos governos das províncias. “Eu diria que houve algum progresso na eliminação progressiva dos subsídios federais, mas não dos estaduais. Isso pode continuar e ainda há muito dinheiro que não foi abordado em ambos os casos”, diz. O governo federal prometeu apresentar um plano para avançar o corte de subsídios federais ainda neste ano.

Além disso, há subsídios fornecidos pelos bancos canadenses para toda a indústria fóssil. Um relatório publicado em novembro pela Reclaim Finance, por exemplo, mostra que os bancos Scotiabank, RBC, TD, BMO e CIBC emprestaram e investiram mais de US$ 20 bilhões para empresas que exploram carvão para uso metalúrgico. Em 2022, o RBC investiu US$ 42,1 bilhões na indústria de combustível fóssil. Foi um crescimento de 4,18% comparado a 2021.

Líder europeu

A Noruega é o maior produtor de gás e petróleo totalmente europeu (A Rússia tem parte do território na Ásia). No ano passado, o país concedeu 47 novas licenças a 25 diferentes empresas para a extração de gás e petróleo, também ignorando a Agência Internacional de Energia. Neste ano foram 62 licenças para 24 organizações. A produção norueguesa em 2023 foi de quase 4 milhões de barris de equivalentes de petróleo por dia, o que inclui gás. A tendência é que esse nível seja mantido até uma queda na década de 2030, se não forem encontrados novos poços.

Um relatório publicado em novembro pela Oil Change International mostra que o país tem uma rede de apoio forte na indústria de combustíveis fósseis. Um destaque é a organização KonKraft, um dos principais atores no lobby por isenções fiscais de US$ 10,8 bilhões para a indústria norueguesa de petróleo e gás após a pandemia de Covid-19. De acordo com análise da Oil Change International, a Noruega tem alta capacidade financeira para investir em uma transição rápida e justa nacional e internacional.

O país tem metas consideradas ambiciosas para reduzir domesticamente as emissões de gases poluentes, mas, como lembra a Agência Internacional de Energia,exporta mudança climática na forma de óleo e gás.  “A Noruega quer ser vista como um país progressista, mas não quer abrir mão da indústria [de combustíveis fósseis]”, comenta Amiera Sawas, chefe de pesquisa e política da Iniciativa do Tratado de Não-Proliferação de Combustíveis Fósseis.

Cultura do carvão

A Austrália é o quinto maior produtor, um grande exportador e dona da terceira maior reserva de carvão mineral do mundo. Na análise de Sawas, a exploração de carvão é algo considerado importante para a identidade nacional. No início do ano passado, o governo australiano reformulou o Mecanismo de Salvaguarda, política nacional para reduzir as emissões de gases de efeito estufa de grandes emissores industriais. A intenção é deixar as emissões 43% abaixo dos níveis de 2005 até 2030 e chegar a zero líquido até 2050. Porém, uma análise publicada pelo Instituto Australiano em março de 2023 mostra que 116 novos projetos de gás e carvão do governo federal poderiam gerar 24 vezes mais poluição do que o Mecanismo de Salvaguarda pretende remover.

O cenário parece não ter mudado no país. Um relatório publicado pelo governo australiano em dezembro passado diz que projetos de petróleo e gás estão progredindo. Foram anunciados publicamente 27 projetos nesta área, sem contar programas de infraestrutura. Para o carvão foram anunciados 42 projetos. A progressão carvoeira é em grande parte para a indústria metalúrgica.

Para o senador independente David Pocock, a insistência da Austrália em continuar investindo em combustíveis fósseis coloca em risco a existência de países vizinhos do Pacífico. Estados-ilhas podem desaparecer por causa do aumento no nível do mar causado pelas mudanças climáticas. Pocock também relata sobre a influência da indústria de combustíveis fósseis no Congresso australiano. “Você tem os dois principais partidos discutindo sobre a necessidade de mais gás quando exportamos 75% do nosso gás”, comentou. (PRISCILA PACHECO)

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