Alagamento em Brasiléia, sul do Acre. (Foto: Prefeitura de Brasiléia)

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Eventos extremos em todo lugar ao mesmo tempo

Transbordamento no Acre afeta 40 mil pessoas, tornados matam ao menos 26 nos Estados Unidos e a França enfrenta inverno mais seco desde 1959

29.03.2023 - Atualizado 11.03.2024 às 08:31 |

DO OC – Na manhã de terça-feira (28/3), o Rio Acre atingiu 16,84 metros na capital, Rio Branco, quase três metros acima de seu nível de transbordamento, que é de 14 metros. Desde a última quinta-feira, 23/3, quando as tempestades começaram a atingir a região, choveu 276 milímetros na capital, mais do que o total previsto para todo o mês de março (270,1 milímetros). 

Dizer que em uma região choveu 100 mm significa que, em uma área de 1 metro quadrado, a camada de água formada pela chuva que caiu tem uma altura de 100 milímetros. Convertendo para volume de água em litros, uma chuva de 100mm significa uma precipitação de 100 litros de água para cada metro quadrado. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) colocou todo o Acre sob alerta laranja, que indica perigo de chuvas intensas. O alerta abrange ainda partes de outros Estados como Amazonas, Pará, Maranhão, Rondônia, Piauí e Ceará. 

Segundo levantamento do portal G1, até esta terça-feira apenas na capital havia 38 mil pessoas atingidas pelos alagamentos, sendo 2 mil desabrigadas e cerca de 3.800 desalojadas. Foram atingidos 48 bairros; além do Rio Acre, sete igarapés — os cursos d’água amazônicos formados por braços de rios ou canais — transbordaram.  Ao OC, a Prefeitura de Rio Branco informou que até a tarde de terça-feira havia 213 famílias, totalizando 659 pessoas, acolhidas em onze abrigos.  

Desalojados são pessoas que precisaram abandonar suas casas por conta das chuvas, temporária ou definitivamente, mas que não necessariamente necessitam de abrigo público. Já os desabrigados são aqueles que dependem de abrigo. Os atingidos são todos aqueles afetados de alguma maneira pelo desastre, como, por exemplo, feridos, pessoas que adoeceram em consequência das chuvas e alagamentos ou que tiveram suas casas danificadas. 

Fora de Rio Branco, o estrago também é grande. Segundo o último boletim do Governo do Estado, na cidade de Brasiléia, fronteira com a Bolívia, o Rio Acre atingiu 13,23 metros, ultrapassando os 11,40 metros de limite para transbordamento. O município de 26 mil habitantes teve quase 8 mil atingidos. Os números podem ser ainda piores: segundo o próprio boletim, as atualizações vindas dos municípios ainda estão sendo computadas. 

No último domingo (26/3), os ministros do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, sobrevoaram as áreas atingidas. O governo federal autorizou a transferência de míseros R$1,49 milhão para ações na capital e disponibilizou técnicos da Defesa Civil Nacional para atuarem na região. Marina Silva, que é natural do Acre, reforçou, na ocasião, sua proposta de desenvolvimento de um plano emergencial de adaptação a eventos climáticos extremos em 1.038 municípios prioritários, identificados como mais vulneráveis. 

Lá, como cá 

Ainda não há estudos de atribuição específicos que relacionem a tragédia no Acre às mudanças climáticas — e só eles podem estabelecer essa correlação direta. De todo modo, os cientistas concordam, e não é de hoje, que os eventos extremos já estão mais intensos e frequentes no cenário de um planeta aquecido. 

A primeira parte do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC, o Painel do Clima da ONU, de agosto de 2021, mostrou que cada meio grau a mais de aquecimento aumenta a frequência de ondas de calor, tempestades e secas. A segunda parte do relatório, de fevereiro de 2022, mostrou que, de 2010 a 2020, a mortalidade causada por enchentes, secas e tempestades foi quinze vezes maior nas regiões mais vulneráveis do mundo. 

A ciência já avisou e, dia após dia, fica difícil ignorar o que a realidade escancara. Eventos extremos mais frequentes, intensos e mortais — sobretudo para os pobres, negros, indígenas, mulheres e populações vulneráveis do sul global  — não são um anúncio, uma possibilidade, e sim parte de um trágico “novo normal”. 

Na última sexta-feira (24/3), um tornado deixou ao menos 26 mortos no Sul dos Estados Unidos. Foram 25 vítimas fatais no Estado do Mississipi e uma no Alabama — número que ainda pode aumentar. Uma das áreas mais afetadas, descrita por integrantes da Cruz Vermelha como “uma zona de guerra”, foi a cidade de Rolling Fork, no Mississipi, cuja população é predominantemente negra. Segundo a Mema, a agência de gestão de emergência do Mississipi, há quatro desaparecidos e dezenas de feridos. 

Reportagem da ABC News descreveu a devastação em Rolling Fork, com casas reduzidas a escombros, carros virados nas ruas e a população desabastecida, depois que o vento derrubou a caixa d’água da cidade.  Segundo comunicado da Mema, o tornado foi classificado como EF-4 na escala Enhanced Fujita, que vai de 1 a 5. O nível 4 tem rajadas de vento entre 265 km/h e 320 km/h. 

Do outro lado do Atlântico, a França acaba de atravessar o inverno mais seco desde 1959. A estação terminou nesta semana acendendo alertas para o que virá nos próximos meses, especialmente no verão. Já na virada do ano havia indícios de que as coisas estavam fora da ordem: na véspera do réveillon, os termômetros marcaram quase 25ºC na França, temperatura mais alta para o período desde o início dos registros no país. Em janeiro, estações de esqui foram fechadas nos Alpes franceses por falta de neve. 

Tudo isso depois de um verão com temperaturas recordes: em 2022, o verão europeu foi marcado por ondas de calor e pela seca extrema, que colocou quase 70% do continente em estado de atenção. Na França, foi o verão mais quente da história.

A secura do último inverno afetou a agricultura e a geração de energia elétrica. Os reservatórios de água potável estão praticamente na metade, com 55% da capacidade. Para se ter uma ideia, na mesma época, no passado, esse percentual era de 85%. A França depende do degelo das montanhas para que os reservatórios sejam reabastecidos. 

À Reuters, o dirigente da associação de irrigação para agricultores, Christophe Mascarenc, compartilhou o temor diante da seca no  Lago Montbel, conhecido no sudoeste da França por suas abundantes águas azuis. Neste ano, a paisagem se transformou e o lago virou um “deserto lamacento”. 

 Mesmo que use água de outro lago nas proximidades, ele já planeja um corte de 50% a 60% em sua produção de milho neste ano para poupar água. Segundo Mascarenc, o lago é “garantia de renda” para muitos agricultores, e uma seca prolongada pode significar o desaparecimento das fazendas na região. 

O agricultor francês dá rosto e voz ao que o IPCC vem destacando há anos: a agricultura já sofre as consequências de um planeta 1,1ºC mais quente do que antes da Revolução Industrial, com a ocorrência de secas mais frequentes prejudicando plantações. É (mais) um alerta para a urgência da ação climática: como mostrou o IPCC, se em 2050 o limite de 2ºC for atingido, os limiares para a saúde humana e a agricultura serão ultrapassados com ainda mais frequência. (LEILA SALIM)

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