Alemães tostam em Frankfurt em 19 de junho, quando temperatura alcançou 36ºC (Foto: Claudio Angelo/OC)

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Frio recorde, calor e enchente – e 2022 está só na metade

De Brasília a Biarritz, de Bangladesh à Bahia, ano coleciona tragédias em seis meses, atribuíveis à crise climática

23.06.2022 - Atualizado 11.03.2024 às 08:30 |

CLAUDIO ANGELO
DO OC, EM LUXEMBURGO

O maltês Flóki não sabe, mas está nos fazendo assar. Flóki quer latir, mas não pode fazê-lo no quintal da casa de classe média no bairro de Cents, em Luxemburgo, porque seus donos temem ser multados por perturbar a paz na vizinhança. A porta de vidro duplo que separa a cozinha da área externa precisa ficar fechada. Faz 35oC na cidade e não há sinal de uma brisa sequer. A casa inteira vira um forno – sem ar-condicionado ou ventilador para ligar, como na imensa maioria dos lares luxemburgueses. Quem conhece Cuiabá sabe do que estou falando.

No último fim de semana, a Europa central recebeu a primeira onda de calor de 2022. Além dos 35oC em Luxemburgo, as temperaturas bateram 38oC em Paris, 37oC em várias partes da Alemanha, 34oC na Bélgica e na Suíça. Várias cidades no interior da França bateram ou ultrapassaram os 40oC, e Talavera de la Reina, na Espanha, país atingido na semana anterior, marcou 43oC. As temperaturas registradas foram de 10oC a 12oC mais altas do que o esperado para o mês de junho, o último da primavera.

A Organização Meteorológica Mundial qualificou como “incomumente adiantada e intensa” a onda de calor, ou canicule (“veranico”), como o fenômeno é chamado pelos franceses e belgas. Essas massas de ar quente são mais comuns no verão, estação que ainda não havia iniciado quando os espanhóis começaram a sentir o bafo da alta pressão vinda do norte da África em seus cangotes.

As canículas são um fato da vida no verão europeu, mas elas estão cada vez mais frequentes e intensas. A mais famosa – e letal – foi a de 2003, que matou 70 mil pessoas, 30 mil só na França. Em setembro de 2017, uma onda de calor apelidada “Lúcifer” elevou os termômetros a mais de 40oC em grande parte do continente e matou dezenas de pessoas em incêndios florestais em Portugal; no ano seguinte, em julho, mais uma quebra de recordes voltou a ocorrer, com incêndios graves acima do Círculo Polar Ártico.

Na ocasião, a Rede Mundial de Atribuição, um grupo de cientistas dedicado a encontrar a “impressão digital” do aquecimento da Terra em eventos extremos individuais, mostrou que a probabilidade de ocorrência daquela onda era duas vezes maior por conta da mudança do clima. Em 2019, mais uma onda inédita fez o termômetro bater 40oC em Paris e a Alemanha quebrar seu recorde histórico de temperatura: 42,6oC

O calor de junho causou apagões e problemas nos transportes ferroviários em algumas regiões da Europa. Idosos e crianças sofreram com o estresse térmico e o número de internações aumentou. Mesmo com as janelas abertas, era difícil dormir em Luxemburgo, onde à meia-noite fazia 27oC e a mínima na madrugada não ficou abaixo de 24oC.

Mas isso não foi nada em comparação a uma outra onda de calor no hemisfério Norte neste ano, a que atingiu a Índia e o Paquistão em março e abril. Nos países asiáticos as temperaturas atingiram a marca dos 49oC, matando pelo menos 90 pessoas. A mesma Rede Mundial de Atribuição se debruçou sobre o fenômeno e concluiu que o evento na Ásia teve sua probabilidade de ocorrência multiplicada por 30 por causa do aquecimento global. Se o aumento da temperatura da Terra atingir 2°C, uma onda de calor como a que vem ocorrendo na região seria esperada com a mesma frequência pelo menos uma vez a cada cinco anos.

A internet ainda estava sacudida pelas notícias do calor na Europa quando outro desastre natural se abateu no hemisfério Norte, e novamente na Ásia: uma chuva de monção mais intensa que o normal causou enchentes em Bangladesh, já matou mais de 30 pessoas e forçou milhões a deixar suas casas, informou o Climate Home News.

A tragédia bengali ilumina a questão das perdas e danos climáticos, assunto que estará (ou deveria estar) na ordem do dia da COP27, a conferência do clima que acontece no fim do ano em Sharm El-Sheikh, no Egito. Os países em desenvolvimento querem tirar da COP um mecanismo internacional de financiamento para que países como Bangladesh possam acessar facilmente recursos para realocação e reconstrução ao serem atingidos por eventos climáticos extremos. Mas os países desenvolvidos resistem à ideia. Uma reunião de duas semanas em Bonn, Alemanha, destinada a construir consenso em torno dessa proposta, terminou sem avanços exatamente no fim de semana em que a Europa ferveu.

Os extremos do verão boreal são mais peças na coleção de crises climáticas de um 2022 que mal chegou à metade – ainda vêm aí a temporada de furacões no Caribe e de incêndios florestais na Califórnia – e já coleciona a catástrofe de Petrópolis, os alagamentos da Bahia, o frio recorde no Centro-Oeste do Brasil e uma bizarra La Niña tripla que pode espichar as secas nos EUA e no leste da África até o ano que vem. Embora os efeitos, o diagnóstico e os prejuízos já estejam claríssimos, nas salas de negociação em Bonn permaneceu a visão do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, o que prenuncia baixo apetite na COP27 para implementar o Acordo de Paris na velocidade que o combate à mudança do clima exige.

Flóki vai ter que aprender a calar a boca no verão.

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